O casarão situado na esquina da antiga Rua Portas do Carmo com o Terreiro de Jesus tem a sua história entrelaçada, de forma definitiva, ao enredo da vida de Clarindo Silva. Recém-chegado de Conceição do Almeida à capital baiana, foi das janelas do centenário sobrado que descobriu, ainda menino – atento e inquieto -, os segredos, as belezas e as desventuras da cidade de Salvador. No Bazar Americano, antigo estabelecimento conjugado à Cantina da Lua, trabalhou como empregado doméstico, auxiliar de balcão, balconista, batedor de ferrugem, subgerente, gerente e contador. Ato contínuo, em um rompante certeiro, assumiu o negócio vizinho, arrendando – e, depois, comprando – a Cantina da Lua. “Sombra de seu perfil”, como diria anos mais tarde, o estabelecimento se tornaria sua trincheira de incansáveis batalhas em defesa do Centro Histórico de Salvador e de luta pela preservação da memória cultural da Bahia.
Frequentador assíduo de bibliotecas públicas e se valendo da enorme obstinação com a qual trilhou o caminho dos estudos, formou-se em Contabilidade e Jornalismo, atuando como repórter policial nos jornais A Tarde, Jornal da Bahia e Tribuna da Bahia. Escreveu poesias, compôs letras de samba, assinou manifestos, distribuiu cartilhas de alfabetização, publicou livros e redigiu cartas endereçadas ao Papa João Paulo II e ao presidente José Sarney, por meio das quais denunciou o processo de degradação e de abandono crescente do Centro Histórico da cidade, a esterilização de mulheres negras, o ódio racial e a mortalidade infantil.
Consoante com seus ideais, criou, em 1983, o Projeto Cultural Cantina Lua, iniciativa que, já em sua primeira década, deu origem à Festa da Bênção e promoveu centenas de eventos no Centro Histórico, apresentando ao público grandes nomes da música brasileira, como Waldick Soriano, Martinho da Vila, Moraes Moreira, Clara Nunes, Pinduca, Beth Carvalho e Zezé Motta. A casa abrigou, ainda, dezenas de lançamentos de livros; programas radiofônicos; exibições de filmes e peças teatrais; festivais de bandas, fanfarras, quadrilhas e entidades carnavalescas; oficinas culturais e exposições de arte; projetos educativos, entre outras iniciativas. Em 1985, o restaurante foi palco e fio condutor do enredo do curta-metragem A Resistência da Lua, dirigido por Octávio Bezerra e com direção de fotografia de Miguel Rio Branco – a película ganhou o prêmio de Melhor Documentário no Festival de Cinema de Havana e foi vencedora do Tatu de Ouro na XV Jornada Internacional de Cinema da Bahia.
Um capítulo especial da biografia de Mestre Calá deve ser dedicado aos sambistas da Cidade da Bahia. Por muito tempo, a Cantina da Lua foi considerada o “quartel-general do samba de Salvador”. Palco de inúmeras apresentações musicais, lançamentos de discos e rodas de samba, o restaurante chegou a ser considerado a segunda casa de muitos bambas da cidade, como Batatinha, Riachão, Claudete Macedo, Ederaldo Gentil, Walmir Lima, Edil Pacheco, Nelson Rufino, Tião Motorista, Panela, Miriam Tereza e muitos outros. Em retribuição, foram diversas as homenagens dedicadas pelos sambistas da cidade à Cantina da Lua e ao anfitrião da casa.
A atuação política de Clarindo Silva, no entanto, não se limitou tão somente ao reduto cultural e boêmio da Cantina da Lua. Ainda que não tivesse obtido sucesso nas diversas investidas que fez pelo campo da política institucional, foi consagrado, popularmente, como “vereador sem mandato” ou, ainda, o “Prefeito do Pelourinho”. Sua militância política foi fundamental em ocasiões em que promoveu plebiscitos visando à preservação de manifestações enraizadas no solo sagrado da cidade de Salvador, logrando para que a Lavagem do Bonfim, a Festa de Santa Bárbara, o cortejo do 2 de Julho e os festejos carnavalescos tivessem seus ritos tradicionais preservados. Batalhou contra a verticalização da orla de Salvador, pelo tombamento do Pelourinho como Patrimônio da Humanidade, pela liberdade de Nelson Mandela, pela conscientização da população na campanha contra a Aids, contra o fechamento do Hospital Espanhol, pela permanência de antigos moradores na região central da cidade, entre muitas outras lutas, com vitórias e derrotas.
À frente da Acopelô (Associação dos Comerciantes do Centro Histórico de Salvador) ou ocupando cargos públicos, como assessor do Ipac (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural de Salvador), administrador da Regional Centro da cidade e representante da Bahia junto à cadeira de Cultura da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), imprimiu – com fé e resistência – sua marca na defesa dos aspectos sociais e humanos como o mais valioso capital na formulação de projetos e políticas públicas, dos mais simples aos mais complexos.
Membro de organizações seculares como a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e a Sociedade Protetora dos Desvalidos, Clarindo Silva tornou-se reconhecido publicamente por suas ações realizadas em prol do município que o acolheu, tendo sido condecorado com as mais distintas honrarias oferecidas pela Câmara dos Vereadores e pela Prefeitura de Salvador, como o título de Cidadão da Cidade de Salvador e as medalhas Thomé de Souza, Zumbi dos Palmares e 2 de Julho. Foi agraciado ainda com o título de Doutor Honoris Causa pela Université Libre des Sciences de L’Homme de Paris e com a Comenda da Cultura e das Artes pela Universidade das Américas. Em 2008, após uma histórica e conturbada disputa, foi coroado Rei Momo – negro e magro – do Carnaval de Salvador.
Clarindo Silva também consagrou-se como escritor, inserindo seu nome em diversas coletâneas de crônicas e poesias de autores soteropolitanos. Em 2004, publicou seu livro de estreia, Memórias da Cantina da Lua, que já está em sua sexta edição, e, em 2021, lançou Conversa de Buzú, obra que reúne conversas e situações registradas em ônibus de linhas municipais de Salvador. Mestre Calá teve ainda a sua biografia escrita pelo jornalista Vander Prata para a Coleção Gente da Bahia, com edição da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia.
Em 2021, prestes a completar 66 anos de dedicação e luta diuturna pelo Centro Histórico de Salvador, de dentro de seu bastião lunar, Clarindo Silva mantêm acesa a chama da resistência sacralizada na máxima que é o retrato mais fidedigno de sua identidade: “O povo que não preserva o passado, não vive o presente e jamais poderá construir um grande futuro”.
Salve, Mestre Calá!