À frente da Cantina da Lua desde 1971, Clarindo Silva fez do casarão situado na esquina da Rua Alfredo Brito com o Terreiro de Jesus um núcleo estratégico da sua luta em defesa do Centro Histórico de Salvador. Para cumprir a árdua jornada, o baiano de Conceição do Almeida não atuou só. Agitador cultural engajado e com grande articulação junto a diferentes segmentos da sociedade baiana – como sambistas, artistas, escritores, jornalistas, líderes religiosos, representantes do movimento negro, administradores públicos e políticos -, Mestre Calá soube concentrar seus esforços e ações em um projeto cultural, educativo e social bem estruturado e com capacidade de impactar positivamente a região histórica do Centro da cidade: o Projeto Cultural Cantina da Lua.
O caminho para a realização do projeto, que deixou um legado perene na história e na cultura da cidade, já estava sendo pavimentado desde o momento em que assumiu o comando da Cantina da Lua, na década de 1970, ainda como arrendatário. Ponto de encontro de sambistas de Salvador, o restaurante foi palco de inúmeros lançamentos de LPs, como os clássicos “Samba da Bahia” (1973), que marcou a estreia de Batatinha, Riachão e Panela no meio fonográfico, e “Sonho do Malandro”, primeiro álbum individual de Riachão, lançado em 1981. Atravessando as baías, indo em direção à Guanabara, Mestre Calá passou a promover, desde 1977, o evento mais antigo a ser celebrado anualmente na Cantina da Lua, a Noite em homenagem a Noel, realizada sempre no dia 4 de maio, data de falecimento do Poeta da Vila.
Ainda na fase pré-Projeto Cultural Cantina da Lua, Clarindo Silva ousou ir além dos lançamentos de livros, que já vinham sendo realizados de forma sistemática no local, editando e publicando duas obras, “A Mulher de Aleduma” (1981), de Aline França, e “Pássaro Azul-Manhã Celeste” (1982), de Léa Fonseca e Georgiton Ganner. Pouco antes, em 1979, também foram iniciados dois importantes movimentos culturais na Cantina da Lua: a FM 4.44 Frequência Motivada da Lua, pioneira rádio comunitária do Centro Histórico de Salvador, veiculada em três edições (meio-dia, 18h e meia-noite), ao longo de duas décadas; e as tradicionais homenagens em placas com nomes de personalidades e amigos da Cantina da Lua, no primeiro andar da casa.
Para contar a história de surgimento do Projeto Cultural Cantina da Lua, é importante contextualizar que, em meados da década de 1970, o Pelourinho sofria com o descaso e o abandono progressivo do poder público e da sociedade civil soteropolitana, enfrentando, também, o duro golpe do esvaziamento da região por diferentes organizações estatais e pela iniciativa privada, como a transferência da Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus para o Campus da Universidade Federal da Bahia no Canela, o fechamento dos prédios do INCRA e da Academia de Letras da Bahia e a tentativa de desativação do terminal de ônibus da Sé. Neste período, vários movimentos surgiram em defesa da região central da cidade, em especial o Revicentro, iniciativa que partiu da comunidade e contou com o apoio dos governos estadual e municipal, mas que não obteve êxito, tornando-se, em pouco tempo, manobra de interesses particulares de políticos locais.
Clarindo Silva seguiu incansável na luta, indo muito além dos seus interesses mais imediatos de sobrevivência. Como forma de sensibilizar e atrair a atenção e a responsabilidade de autoridades e entidades governamentais, em particular, e da sociedade soteropolitana, de modo geral, teve a iniciativa de promover e incentivar uma ocupação sistemática da área central da cidade com diferentes atividades e manifestações artísticas e culturais. Foi, então, que, conforme registrou-se em sua ata de fundação, “aos vinte e cinco dias do mês de outubro de 1983, à noite, um grupo de amigos reunidos no 1º andar da Cantina da Lua no Terreiro de Jesus, nº 2, resolveram [sic] agir em defesa da revitalização do Centro Histórico de Salvador, bem como para abertura de um espaço mais amplo para os artistas da terra”. Surgia o Projeto Cultural Cantina da Lua, trazendo em sua diretoria Clarindo Silva (presidente), Carlos Pires Conceição (vice-presidente), Lourdes de Almeida Nobre (1ª secretária), Sandra Costa Fiuza (2ª secretária), Cléodo Mércio Alves de Jesus (tesoureiro), Aline dos Santos França (diretora de programação) e Renato Oliveira Almeida (diretor de patrimônio e relações-públicas).
Além de amigos que, afetivamente, sempre estiveram ligados à Cantina da Lua (como Rêmulo Pastore, Jehová de Carvalho, Silvio Mendes e Júlio César de Assis) e de familiares, chama atenção na lista de sócios-fundadores a profusão de nomes de sambistas, justificando a fama de “quartel-general do samba de Salvador” pela qual o restaurante se consagrou – não à toa, a celebração que marcou a inauguração do PCCL (Projeto Cultural Cantina da Lua) se deu com o show Os Onze de Ouro, organizado em um palco improvisado ao redor da Cantina da Lua, onde se apresentaram os sambistas Batatinha, Riachão, Edil Pacheco, Ederaldo Gentil, Claudete Macedo, Tuninha Luna, Walmir Lima, Paulinho Camafeu, Nelson Rufino, Tião Motorista e Bob Laô. Uma seleção de ouro!
Foi também no ano de 1983 que surgiu o evento considerado o principal impulsionador do processo de revitalização do Centro Histórico de Salvador nos anos 80, a Festa da Bênção – que, por ser realizada tradicionalmente no segundo dia útil da semana, ficaria mais conhecida como Terça da Bênção. A celebração, de pronto, contou com as adesões do Olodum, que fixou a terça-feira como dia oficial de ensaio do bloco, e dos Filhos de Gandhy, que criou a Seresta do Gandhy no mesmo dia da semana, além do Commanche do Pelô, tradicional bloco de índio oriundo da região central da cidade.
A Cantina da Lua, todavia, não se tornou somente a casa de sambistas da cidade, transformando-se, ainda, em ponto de encontro de militantes do movimento negro de Salvador, sobretudo às terças-feiras, dia da Bênção. Vovô do Ilê, João Jorge Rodrigues, Tosta Passarinho, Carlos Pitta, entre outros, debatiam ali os rumos dos blocos e entidades afro da cidade, assim como propostas de políticas públicas voltadas para a população negra de Salvador e ações culturais de afirmação da negritude baiana, em suas conexões com países do continente africano. A luta pelo fim do apartheid na África do Sul, a urgência do desenvolvimento de políticas eficazes na luta contra as desigualdades social e racial e pela ampliação dos direitos e da inclusão social por meio da arte, da cultura e da educação, também foram projetos debatidos nas mesas da Cantina da Lua por personalidades como Olívia Santana, Mestre Didi, Carlos Moura, Célia Sacramento, Abdias Nascimento, Aline França, Kátia Melo, Luiza Bairros, entre outros frequentadores. Diplomatas, políticos, artistas e lideranças negras como Kofi Annan, Desmond Tutu e Danny Glover, ao longo dos anos, também marcaram presença na Cantina da Lua.
No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, o Centro Histórico voltou a sofrer com um novo golpe: a ocorrência sistemática de incêndios nos casarões seculares da região. Neste período, Clarindo Silva chegou a contabilizar quase duas dezenas de incêndios por ano, que resultaram na destruição de inúmeros imóveis tombados. Na imprensa, passou a denunciar, de forma incansável, o agravamento da situação do Centro da cidade devido à falta de hidratantes no local, ao mau funcionamento dos equipamentos existentes, além da grave suspeita de que a origem dos incêndios era criminosa.
Para fazer frente a questões políticas que aprofundavam ainda mais as desigualdades sociais e a degradação dos casarões da região, surgiram diversas ações, sendo uma das mais importantes a Fundação Criançarte de Salvador, criada em 16 de outubro de 1992, que tinha como principal compromisso o resgate da cidadania de meninos e meninas de rua do Centro Histórico por meio da educação patrimonial e de atividades artísticas e culturais. Presidido por Clarindo Silva e trazendo em sua diretoria Aracy Vitória de Jesus, Lourdes de Almeida Nobre, Claudia Marciana Alves de Jesus, Cléodo Mércio Alves de Jesus, Katia de Melo e Silva e Aloisio Souza Pimentel, o projeto contou, ainda, com a participação das artistas e educadoras Gláucia, Dindinha, Rita e Carmela Amaral.
Seu estatuto trazia as seguintes linhas de atuação: desenvolvimento de atividades educativas, culturais e recreativas e oferecimento de educação formal para crianças e adolescentes; desenvolvimento das potencialidades artísticas junto às crianças através de suas próprias experiências de vida; e o oferecimento de cursos profissionalizantes a filhos de mulheres prostitutas sem referência familiar e com alto grau de exclusão social. O Criançarte foi, enquanto existiu, a “menina dos olhos” de Clarindo Silva dentro do PCCL, sendo lembrado com carinho as tardes em que, na companhia da professora Carmela Amaral, percorria com as crianças as ruas, os becos e vielas do Pelourinho, contando histórias sobre os casarões e as centenárias entidades e associações civis com sede na região.
Educação, arte e cultura foram os pilares do Projeto Cultural Cantina da Lua. Dentre as inúmeras realizações do projeto, também tiveram lugar de destaque os festivais de quadrilhas, de fanfarras e de entidades carnavalescas; as exibições de peças teatrais e filmes, em sessões de cinema improvisadas no espaço da Cantina da Lua; as lavagens das igrejas do Terreiro de Jesus; a promoção de palestras e debates; além da realização de inúmeras exposições de arte, sendo uma das mais significativas a I Exposição de Trabalhos Artísticos de Detentos do Estado da Bahia.
Nos aniversários do PCCL, especialmente nas datas mais representativas, sempre houve grandes celebrações, que se somavam à ampla divulgação das conquistas alcançadas no respectivo período. Já nos festejos da conclusão da primeira temporada, um grande show reuniu todos os onze sambistas que se apresentaram no ano anterior, além de artistas, conjuntos e entidades carnavalescas de Salvador, entre os quais estiveram presentes Firmino de Itapuã, Nelson Babalaô, Aparecida, Chocolate da Bahia, Miriam Tereza, Balbino do Rojão, Orquestra Cuba-Jazz e Filhos de Gandhy.
Na celebração dos 20 anos, em outubro de 2003, um artigo de Clarindo Silva na seção “Palavra do Presidente”, do Informativo Acopelô (Associação dos Comerciantes do Centro Histórico de Salvador), detalhou “a ousadia e o fôlego” do Projeto Cultural Cantina da Lua, em duas décadas de atuação: a realização de mais de 800 shows, nove festivais de bandas e fanfarras, oito concursos de músicas campeãs de blocos afro e afoxés, nove lavagens de igrejas do Terreiro de Jesus, 37 debates com políticos candidatos a cargos majoritários e 118 palestras, além de um sem-número de exposições de arte e lançamentos de livros.
Outras grandes conquistas políticas também foram logradas com a participação do PCCL, como a manutenção do trajeto tradicional da Lavagem do Bonfim com saída da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia; a permanência dos festejos carnavalescos e da Festa de Santa Bárbara no Centro da cidade; e a inviabilização do projeto de lei que permitiria a verticalização da orla marítima da cidade. Uma das frentes de luta mais combativas de Clarindo Silva, nos últimos anos, tem sido a reivindicação de um programa sistemático de reparação e recuperação das “artérias” do Pelourinho, englobando a Ladeira do Caminho Novo, a Ladeira do Taboão, a Ladeira da Montanha, a Ladeira da Misericórdia, o Pau da Bandeira, a Santa Tereza, a Ladeira da Praça, a Vinte e Oito de Setembro, a Ladeira da Saúde, a Ladeira da Palma, a Ladeira do Ferrão e do Pax, a Ladeira da Preguiça e a tradicional Baixa dos Sapateiros, chamada por Clarindo como “a veia aorta do nosso Pelô”.
Neste ano de 2021, que marca o cinquentenário de Clarindo Silva à frente da Cantina da Lua, o PCCL segue atuando e promovendo ações culturais, artísticas e educativas, com a perspectiva de expansão para o espaço virtual. A máxima que marca a figura popular e carismática de Mestre Calá continua sendo a premissa que orienta os rumos do Projeto: cuidar do passado, para viver o presente, com o olhar no futuro.
“Viva o Pelô! Pelô vivo!”